The flap of a butterfly’s wings in Brazil set off a tornado in Texas.

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sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Ilusão

"Perhaps what isn't intelligible for me isn't therefore unreasonable. There may be a realm of wisdom from which the logician is banished."
(autor indeterminado)

Ele ali estava. No mesmo sítio de todos os dias. Com os mesmos olhos escuros e penetrantes que pareciam perscrutar tudo o que se passava à sua volta. Passava os dias no mesmo sítio, sentado, dir-se-ia que a dormir. Não falava, mas ouvia. À noite, quando era arrastado para a cama, servia de aconchego e era o passaporte para um mundo diferente.

Era um mundo perfeito. Perfeito e, mesmo assim, tão parecido com o mundo de todos os dias. O acordar era idêntico, mas mais solitário. A chuva caía da mesma maneira lá fora, fazia o mesmo barulho, provocava o mesmo sentimento de distância. Porém, agora só lá estava ele, no meio dos seus braços, para poder partilhar aquela manhã chuvosa.

Mas tudo o resto estava, às vezes, tão próximo. Foram muitos os momentos em que julgou acordar dum pesadelo. Contudo, quando começava a distinguir os contornos dos objectos no quarto, distinguia também os contornos dos seus pensamentos. Na verdade, em vez de um pesadelo, não passara mais de um sonho em que a realidade era um pesadelo.

No meio de todas estas controvérsias, tinha momentos, sempre ao acordar, em que confundia a realidade com o resto. Em certas alturas, chegava a revolver-se na cama, como que certificando-se que estava, de facto, só.

Não completamente só, é verdade. Ele lá estava, olhando e escutando tudo em redor. Seu velho companheiro de aventuras. Agora não passava de uma bengala em que se apoiava. Era o álbum de fotografias que o velho conquistador de mundos apreciava, todos os dias, com a nostalgia dos tempos de glória.

Tão pequeno e, ao mesmo tempo, tão poderoso. Tinha a capacidade de o fazer recordar até o nascimento do mundo, sem que sequer lá tivesse estado presente. Era aquilo que se poderia designar como um projector. Como os que mostram filmes. Na verdade, ele mostrava filmes. Os filmes que se queria ver. Ele sim era uma verdadeira caixa mágica.

E no fim, não passavam de ilusões. Quando a chuva começava a soar nos seus ouvidos ainda meio adormecidos, já o filme estava nos créditos finais. Ou se não estava, nunca chegaria ao fim. A chuva marcava o fim da ilusão e o começo da realidade. Pelo menos, daquilo que se julgava mais real. Porque, afinal, o que é e o que não é real? Nos seus sonhos, tudo era real, até o pesadelo que, na realidade, era real.

Sempre que tomava a sua chávena de café matinal e pensava sobre o que era ou não real, o que tinha sido ou não ilusão, concluía o mesmo: não entendia e, por isso, desejava ardentemente voltar para junto do seu companheiro, que lhe mostraria o novo episódio, na esperança que percebesse o que era afinal.

Mas, invariavelmente, se resignava. Nestes momentos, apercebia-se sempre da sua pequenez. De como o mundo era grande e complexo e como ele, ali sentado a beber café, não percebia sequer se ele funcionava ou não, quanto mais como funcionava.

Era esta sua ignorância que lhe permitia desejar algo mais. Era ela que o fazia querer todas as noites o mesmo filme. Enquanto o visse, não seria uma ilusão, porque sentia o que ele lhe queria transmitir.


Lisboa, 15 de Janeiro de 2010