Todos nós sabemos que o limite mínimo de entrada numa discoteca é uma farsa. Raramente alguém é impedido de entrar só por ter menos de 16 anos. O público agradece, porque pode ir à discoteca; a gerência ainda agradece mais porque, se assim não fosse, perderia bastante clientela. No meio disto, as autoridades fiscalizadoras fazem “vista grossa” e vamos todos compactuando para que esta situação vá sendo permitida. Porém, chega uma altura em que o motivo para haver limites às entradas nas discotecas prova a sua razão de existir.
Este fim-de-semana, numa discoteca de Caldas da Rainha, pudemos perceber por que é que a lei só permite a entrada a maiores de 16 anos e por que é que, neste caso específico, o estabelecimento tem uma lotação máxima para 400 pessoas. Nenhum destes preceitos foi respeitado e, na hora de pagar a conta, gerou-se a confusão. A discoteca tinha, inegavelmente, muito mais pessoas no seu interior do que a sua capacidade permitia e grande parte dessas eram menores.
Apesar da gravidade desta situação, as consequências poderiam ter sido contidas se a gerência do espaço tivesse tido o bom-senso de, vendo tamanha avalanche de gente confinada num pequeno cubículo (onde se procedia ao pagamento), abrisse as portas e permitisse a saída. Teria prejuízo, é certo, mas evitaria que a GNR e o INEM tivessem que acorrer ao local. Contudo, já sabemos que o bom-senso, por norma, não abunda, e foi mesmo necessária a intervenção destas duas forças.
O INEM foi chamado porque, além das previsíveis consequências da venda de álcool a menores, no meio da multidão começaram as crises de ansiedade e os desmaios. A GNR foi chamada para manter a ordem, mas tivesse ficado no quartel e o resultado seria o mesmo. No início, os militares, perante o absurdo e o perigo da situação, decidiram o óbvio: abrir as portas de emergência e deixar a multidão sair. O caricato da situação ocorreu quando um membro da segurança privada da discoteca “ordenou” ao militar da GNR que fechasse a porta, porque alguém tinha que cobrir a despesa da noite. E eu pergunto (como se perguntou a um militar na ocasião, obtendo como resposta um encolher de ombros), afinal quem é a autoridade? A GNR ou a segurança privada?
Detalhes à parte, a verdade é que quem esteve mal foi a GNR. Neste episódio específico da abertura de portas, a discoteca só pode ser acusada de falta de bom-senso porque, no fundo, apenas pretendiam cumprir o seu trabalho, ou seja, cobrar as entradas a quem ali passou a noite. Cabia à GNR mostrar quem mandava e resolver o problema com celeridade.
Para mim, a verdadeira culpa da discoteca não reside no efeito, mas na causa. Ou seja, nunca deveria ter organizado uma festa desta dimensão. Se não tinha espaço e condições para o evento (o que, por mais que a discoteca insista em negar, é verdade), não o organizava. E, pior que isso, foi a organização ter sido feita a pensar já à partida em infringir o limite mínimo de idade permitido por lei. Se é mais ou menos pacífico (ilegal, mas pacífico!) que numa noite “normal” se fechem os olhos a algumas crianças que entram na discoteca, como se pode permitir que se organize uma festa de fim de aulas cujos ingressos sejam vendidos em escolas secundárias e de terceiro ciclo? Obviamente que grande parte das vendas será feita a menores de 16 anos porque são esses que maioritariamente frequentam essas escolas.
É muito grave a forma como uma discoteca promove um evento dedicado a um público que, por lei, não pode frequentá-lo. Não estão isentos de culpa os pais destas crianças, que não as deviam ter deixado ir à discoteca. Mas o grande culpado é o promotor do evento (a discoteca e uma rádio), porque deliberadamente propiciou esta situação.
Poderíamos ainda falar da forma pouco clara como foram vendidos os ingressos, sem ninguém saber muito bem o que estava a comprar (se uma entrada, se uma bebida e uma entrada, se nada disso, ou se outra coisa qualquer). Mas isso é apenas a demonstração do chico-espertismo português, de tentar enganar os outros ao máximo. A mim, pessoalmente, enganaram-me. E enganaram-me não só (nem principalmente) na venda do ingresso mas, sobretudo naquilo que foi esta noite. Todos os que foram àquela discoteca foram cúmplices com a situação gravíssima que ali aconteceu, porque todos deram cobertura ao longo dos anos e margem de manobra para que a discoteca agisse sem controlo. Como cidadãos, devíamos pensar bem sobre isto (um reflexo do país real em que vivemos) e se é assim que algum dia chegaremos a algum lado. É inaceitável e inqualificável que uma discoteca tenha promovido ao longo de semanas um evento onde se sabia que iria haver excesso de lotação (porque foram emitidos mais ingressos que os lugares disponíveis) e onde se sabia que iam estar menores de idade (porque foi a eles, maioritariamente, que foram vendidas as entradas) e ninguém tenha feito nada para o impedir ou, pelo menos, controlar. À discoteca faltou, como sempre falta, bom-senso. Mas que dizer dos que a tudo assistiram complacentemente?
Caldas da Rainha, 19 de Dezembro de 2010